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Rosa & Romances

Rosa & Romances

Ouro & Prata [Capítulo 3]]

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Capítulo 3

A menina de la Luna

Irina Branca de Gouveia a quem todos chamam, vai-se agora saber porquê, a “Menina de la Luna” está votada à clausura vai para quase cinco anos.

Certa madrugada de um distante mês de Outubro, no pátio central do palacete da Mata das Flores, situado nos arredores de Lisboa, aguardava-a um coche brasonado com as armas do correio-mor de Portugal, para a conduzir ao mosteiro.

Desceu tranquila e silenciosa a grande escadaria do paço, seguida apenas pelo mordomo e pela criada que a servia, atravessou o extenso átrio que servia a porta de entrada, flanqueou-a e viu-se no exterior. O cocheiro já esperava no seu lugar e mais dois criados de libré a aguardavam, um junto às suas bagagens já carregadas e o outro a segurar a portinhola de acesso ao interior do coche. A criada não foi para além da porta e ali mesmo lhe fez a vénia de despedida. O mordomo porém, acompanhou-a mesmo até à entrada da carruagem e só aí se despediu. Irina ajeitou o manto escuro que a cobria da cabeça aos pés e deitou um olhar de relance ao lugar. Aceitou a mão enluvada do criado e pouco tempo depois já estava acomodada no assento. A porta foi selada e o criado tomou o seu lugar. Alguns instantes depois o rodado do carro já chiava sobre o lajeado do pátio. Atravessou o portão principal e tomou o caminho em direção à capital.

Dias antes recebera uma missiva da madrinha, remetida do palacete de Belém, dando conta do agravamento do estado de saúde de Luís Victório e informando que dado o isolamento do Palácio da Mata das Flores e das dificuldades nos cuidados médicos, estavam determinados a passar o Inverno em Lisboa. Durante esse tempo aconselhava-a a fazer um retiro espiritual na companhia das irmãs clarissas, num convento de que era patrona. Assim que o Inverno passasse e Luís Victório estivesse restabelecido poderia então regressar à Quinta da Mata das Flores.

Aceitou a proposta com resignação e preparou a partida. Não ficou preocupada com o tipo de retiro sugerido porque estava habituada a frequentar o mosteiro de Odivelas e havia momentos em que precisava de se recolher. Além disso tinha especial inclinação para auxiliar as pequenitas que frequentavam as aulas do convento nas suas tarefas diárias e a madre superior ficava sempre agradada com a sua visita. Outras jovens noviças e até mesmo professas, tinha em especial consideração e gostava de por lá ficar durante certos períodos na sua companhia.

Certamente desta vez o retiro era mais demorado e devia acontecer num lugar mais distante. Embora a madrinha não tivesse identificado o mosteiro, o excesso de bagagens que a mandou levar, o excelente coche que mandou aparelhar e a companhia de dois criados já mostravam que a deslocação não se ficava pelas redondezas.

Claro que poderia ter logo perguntado ao cocheiro qual o destino que estava determinado mas achou melhor não dar parte fraca em frente aos criados.

As milhas que separavam a Quinta, da cidade de Lisboa, fizeram-se em pouco mais de uma hora e Irina julgou que talvez fossem passar a Belém e lá mesmo a madrinha tratasse de a elucidar mas o tempo passou, a rota foi desviada e isso não aconteceu.

Em vez da casa de Belém tomaram o caminho do porto e a carruagem preparou-se para atravessar o Tejo em cima de uma barcaça.

A presença da água e o cheiro da maresia desencadearam em Irina uma torrente de doces lembranças. Via-se menina, jovial e traquina, a correr descalça pela beira do rio. A apanhar sardinhas e petingas ainda vivas que os pescadores guardavam em cestos de vime e depois levavam para vender na estalagem. Ouvia o brado da avó, mandando-a regressar e ela ria, com um riso feito de gargalhadas soltas e cristalinas até perder as forças e tombar sobre o areal grosso das margens. Só mais tarde, muito mais tarde aparecia na estalagem toda suja e desgrenhada e a avó tratava logo de a repreender e de lhe exigir boas maneiras. Então ela vestia o seu melhor vestido, enfeitava os seus longos cabelos com fitas e laços e metia-se à janela toda empertigada.

-Olha lá está ela! A menina de la Luna! - Confidenciava esta ou aquela mulher que passava.

E os rapazes apontavam e desatavam numa enfadonha cantilena: Lunamenina, meninadaluna, não és desta terra, feiticeira da lua! Vai-te embora! Rua! E ela desatava num pranto que ninguém mais a calava.

O Tejo estava tão sobrepujado de batéis que a barcaça atrasou a partida e Irina teve que se pôr um pouco mais à vontade. Retirou o capuz que lhe protegia o rosto e como era habitual sentiu-se logo incomodada pela claridade do dia. Era-lhe muito mais fácil viver de noite. Na escuridão das trevas, conseguia sempre ter mais descanso e por vezes até ver mais longe!

Procurou as lunetas escuras e colocou-as. Eram elas o seu verdadeiro refúgio!

Os seus olhos verdes esmeralda tão claros e límpidos que resplandeciam como duas pedras preciosas eram o frescor do seu rosto mas também a causa dos seus tormentos! Possuíam eles uma estranha particularidade! Demasiado sensíveis à luz ao ponto de se magoarem quando expostos a uma luminosidade demasiado intensa, mostravam-se de dia qual tela matizada a vários tons de verde intenso e de noite, mas só em noites de luar, podiam apresentar inesperadamente uma cor cinza prateada que os fazia lembrar duas esferas lunares!

Nessas ocasiões também adquiria um alcance de visão muito superior. Não era uma visão das coisas reais, mas qualquer coisa de místico e de contemplativo que a levava a ter sensações e experiências muito para além das razões explicáveis. Certamente fora esta sua singularidade, que em criança não sabia controlar, que deu origem a que fosse alvo da curiosidade alheia, apontada como sendo diferente e por consequência alguém a evitar!

Aprendeu a isolar-se e a brincar sozinha e hoje podia considerar-se uma mulher solitária. Predispunha-se facilmente ao estudo e à meditação mas não sentia na sua essência o desejo nem a coragem de abraçar a vida religiosa. Podia até ser útil dentro de um mosteiro como boa mestra nas artes da escrita e da leitura e fazer um excelente trabalho na formação das crianças mas não se via como uma freira, faltava-lhe aquele ideal de entrega que julgava ser indispensável. Por isso sempre que a aceitavam em retiro dizia logo ao que vinha. Poderia dar o seu contributo nas mais variadas áreas de estudo. Ensinar música ou artes decorativas, tais como desenho ou pintura mas não esperassem dela uma atitude de entrega à vida devota. Por isso entrava e saía. Ia para o convento e regressava depois à companhia dos Sousa Coutinho. O único amigo e confidente que conhecia, era Luís Victório mais velho do que ela dezasseis anos, primogénito e herdeiro do título de correio-mor do reino de Portugal, mas sempre muito doente e melancólico. Nunca chegou a conhecer D. Duarte e foi a esposa dele e mãe de Luís quem a trouxe da estalagem, a instalou na Casa da Mata das Flores e lhe deu uma instrução esmerada, contratando para o efeito os melhores Mestres. Mas não se julgue que por isso o seu mundo era fausto. Não! Era modesto e acanhado. Vivia de caridade. Dependia do que lhe davam e do que a autorizassem a fazer! Esteve assim para mais de dez anos. Todo esse tempo confinada ao palacete, aos passeios na mata e aos retiros no convento. Agora que esperava poder vir a ser apresentada à sociedade, ser convidada para bailes e saraus, conhecer outras pessoas com quem travasse amizade e quiçá até afeição, vai a madrinha e dá-lhe outro rumo! Para onde? É que ela não sabia!

Finalmente a barcaça zarpou e Irina protegida da luz direta, pelo uso das lunetas, pode apreciar a paisagem. Tinha a certeza de que já fizera aquela viagem. Só que tinha sido em sentido contrário. Era de noite e havia luar! Trouxeram-na enrolada numa manta e ela vendo-se sozinha e assustada lançou-se num choro desesperado e esperneou até à exaustão. Por fim o sono venceu-a e quando acordou já estava na cidade grande. O luar era tão vibrante que a colina do castelo resplandecia. Foi nesse momento que viu refletida na face da lua a silhueta de um cavaleiro de pendão em riste e trombeta na mão, anunciando as boas novas e ela ficou maravilhada! Prendeu o olhar às feições do cavaleiro e soube que aquele reflexo era a imagem de seu pai! Alguém que nunca conhecera e pessoa de quem ninguém ousava falar!

Durante todos aqueles anos sonhara com a voz ternurenta da avozinha a dizer-lhe ao ouvido, que fosse forte, que Deus tinha para lhe dar uma vida linda! Mas ela recusava, dizia que não queria. Era feliz em Aldegalegga. Ali junto ao rio, onde atracavam os barcos e passava a estrada real. Era feliz na Estalagem da Posta que a sua avó dirigia com a ajuda da tia Helena. Por que razão nessa noite de luar havia de ter chegado aquela dama para a arrancar ao seu aconchego!

D. Isabel era uma dama poderosa que dirigia os negócios da família desde que o esposo falecera. Tinha um único filho e acabou por desenvolver por ela uma certa afetividade, por isso, quando a ocasião se proporcionava e ela se atrevia a perguntar, recebia algumas explicações. Acolhera-a porque a sua avó era uma boa mulher e uma excelente colaboradora nos negócios da Mala Posta. Dirigia a estalagem de Aldegalegga e prestava apoio à de Vendas Novas. Com um volume tão grande de trabalho e já com uma idade avançada, não tinha condições para educar uma criança e ela que era patrona de vários conventos e atribuía avultadas somas para a instrução de meninas pobres, achou por bem acolhê-la e mantê-la em sua casa.

E por estas escassas informações se ficava e ela resignava-se. Aos amigos apresentava-a como afilhada mas nunca permitiu o seu convívio quando os palacetes de Lisboa se iluminavam para saraus e festas. Nessas noites ela ficava confinada ao paço da Mata das Flores e chorava com saudades da avozinha que nunca mais vira e que apenas lhe escrevia duas vezes por ano. Pelo seu aniversário e pelo Natal! Amargurava também a sua condição de órfã. Sem mãe, que a perdera, quando foi dada à luz. E sem pai, que nunca lhe soubera o rasto!

A barcaça movimentava-se pelas águas serenas do Tejo e Irina sentia que estava muito perto de casa. Será que a madrinha a fazia retornar às suas raízes? Será que naquele dia e depois de tantos anos voltaria a abraçar a avó? Quantas vezes temeu que ela morresse sem que a pudesse velar! Sentia ganas de chamar o cocheiro e interrogá-lo mas o homem tinha-se apeado e estava entretido com outras gentes um pouco longe do coche. Aguardaria! Tirou um livro da bolsa de seda e pôs-se a folheá-lo. Eram poemas da soror Juana de la Cruz e quase sempre a reconfortavam.

 

Atalaia4 [Capítulo 3 - continuação]

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À quarta-feira, no período da manhã, só tinha duas aulas, das dez ao meio-dia, por isso aproveitava para ficar na cama até mais tarde.

No entanto, ainda não eram nove horas, quando sentiu umas pequenas pancadas na porta do quarto.

-Lena – era Mónica quem chamava – o teu namorado... o Paulo está na sala, mando-o entrar para aqui?

Estava-se mesmo a ver que ele tinha que vir. Apenas não se tinham visto na terça-feira. Um dia, um único dia. Paulo tornava-se enfadonho, com esta necessidade de estar sempre com ela. Isto até parece doença – exclamou em voz alta.

-O quê? – Perguntou Mónica – abrindo a porta e entrando. Pois é menina o teu homem está aqui. Recebe-lo aqui ou na sala?

-Na sala, não quero que as outras colegas pensem que isto é algum bordel.

-Credo, Lena, não exageres. Só já cá estou eu. A Sara e a Adília, já saíram para as aulas.

-Mesmo assim, não quero abrir precedentes. Ele que espere na sala. Não é mais que ninguém.

 

Demorou-se o mais que pode e quando entrou na sala, interrogou-o com o olhar e com as palavras:

-Então? Tivestes que fazer na cidade?

-Lena, meu anjo, bom dia – Paulo aproximou-se sorrindo e dando-lhe um beijo leve - Só te vim ver.

Pelo menos, podia arranjar desculpa, mas não, é tão sincero que dá enjoo – Lena não pôde deixar de pensar.

-Pois é. Mas só não me viste ontem. - Insinuou trocista.

-Julguei que ficasses contente – Paulo mostrava-se magoado e Lena, vendo a sua reacção, sentiu-se na obrigação de aliviar a atitude, por isso cedeu:

-Tudo bem. - Depois, acrescentou: Tenho aula às dez.

-E na hora de almoço. Posso esperar por ti? – Paulo perguntava ansioso.

-Já tinha combinado ir ao refeitório. – Respondeu secamente.

-Vá lá Princesa, faz isso por mim. Daqui a pouco vou-me de novo embora e quero aproveitar todos os momentos. - Paulo implorava.

-Tudo bem. Espera-me depois das aulas, digo-te onde. - Lena não viu outra saída senão concordar.

 

 

À saída das aulas, Mónica chamou os colegas, para seguirem juntos para o refeitório.

-Não esperem pela Lena que ela não vai – informou.

Miguel Sousa olhou para trás e abrandou o passo para que Lena o alcançasse, depois abordou-a em tom irónico:

-Então, minha Rainha, tem programa?

-Qual programa? - Lena procurava não lhe ligar.

-Como não vai almoçar com a arraia-miúda, julguei que houvesse na rede peixe graúdo. Não é do que a menina gosta? - Miguel insistia enquanto acompanhava o passo decidido da colega.

-Eh!...Miguel és tão chato. - Lena parou, por segundos, olhando-o descaradamente:

-Onde vou não é da tua conta, não tens nada a ver com isso.

-Almoço de negócios, certamente – continuava a insinuar trocista – com o Sr. Professor?

Lena, desta vez resolveu não responder, continuando a caminhar em direcção à saída.

-Miguel… ficas ou vais – gritava Mónica já na rua.

-Vou! – E Miguel desistiu, avançando a correr para o grupo. À saída da porta deu de caras com Paulo. Logo não o reconheceu mas depois, por alguma razão desconhecida, sentiu-o uma ameaça e lembrou-se dele.

-Meu amigo, como está. – cumprimentou, estendendo a mão para Paulo.

Nesta altura já Lena se aproximara.

-Hoje não almoçam connosco? - Miguel perguntava como se ainda não tivesse visto Lena.

-Olá...tudo bem? – Paulo cumprimentou o rapaz para logo a seguir responder: – Vamos almoçar só os dois.

-Como manda o figurino, não é verdade? Sejam felizes... – Miguel ainda olhou intensamente para Lena antes de se afastar por completo.

 

Entraram num restaurante do centro histórico da cidade, não muito longe do Departamento de Pedagogia, no Palácio da Inquisição.

Paulo encostava-se a ela o mais que podia, enquanto escolhiam a ementa. Podiam ter ficado frente a frente mas, Paulo fez questão, de mudar as cadeiras para ficarem mais juntos.

-Nem um minuto longe de ti, Princesa... – falava ao seu ouvido - Posso dormir cá?

Lena deu um pulo na cadeira.

-Nem penses. Se o meu pai ou a minha mãe soubessem. - Lena sentiu-se atentada contra as suas vontades.

-E quem lhes diria? - Paulo diminuía a questão.

-Ora essa, qualquer pessoa – afastava-se ainda mais dele, olhando-o visivelmente irritada.

-Estás sempre a inventar. Espera pelo fim-de-semana. Esqueces-te que vivo em casa com mais três pessoas. E se todas quisessem receber homens lá em casa. Aquilo tornava-se num bordel.

-Lena...eu e tu, a nossa relação não é nenhuma aventura, nós somos comprometidos, noivos, quase casados. Elas haviam de compreender…-Paulo continuava a implorar de mansinho.

-Sou eu que não quero e se voltas a insistir nesse ponto, chateio-me deveras. -Lena estava decidida a rematar de uma vez a questão e Paulo entendeu a mensagem.

-Tudo bem, Princesa...vamos almoçar.

E almoçaram. Paulo sempre preocupado, com os seus gostos. Sempre inesgotável em demonstrações de carinho e afecto. Beijos leves nas mãos, afagos no rosto, olhares apaixonados. Quem olhasse para aquele casal, sentado numa mesa ao canto superior direito do restaurante, constataria a imensa paixão demonstrada pelo rapaz e mesmo não conseguindo ver o rosto da rapariga, que permanecia de costas, não lhe ficariam dúvidas que se tratava de um modelo de casal apaixonado.

Sérgio que almoçava sozinho, numa mesa à entrada, reconheceu Lena, assim que se sentou.

Aqueles cabelos e aquela pose eram inconfundíveis. Estava acompanhada e ao que parece por alguém importante. Melhor assim. – Pensou. Mesmo assim, durante todo o almoço não conseguiu desviar o olhar daquela mesa e só o fez quando o casal se levantou e se preparou para sair.

Lena pediu a Paulo que se despachasse. Tinha aulas às quinze horas, que se prolongariam até às dezanove. Hoje era um dos dias que saía mais tarde.

Depois de vestir o blusão, avançou em direcção ao balcão onde Paulo pagava a conta.

Ao virar-se o seu olhar cruzou-se com o de Sérgio. Sentiu-se tremer por dentro. Feliz por o ver, triste pelas circunstâncias. Que pensaria ele dela. Que se consolava rapidamente. Que era comprometida e não honrava os compromissos. Preocupava-se com os juízos de valor que aquele homem podia fazer sobre ela. Queria esclarecer tudo, dizer-lhe como vivia encurralada, naquela situação e como não sabia, nem podia, sair dela.

Paulo aproximou-se e passou o braço pelos seus ombros.

-Vamos, Princesa.

Lena, num ímpeto, escapou-se.

-Vou à casa de banho, podes esperar-me lá fora.

Queria ganhar tempo mas já Sérgio, pagava a conta e se levantava.

Saiu antes deles. Lena sentiu sobre si, um olhar intenso, profundo, negro e brilhante, penetrando-a até à essência e estremeceu de emoção.

 

Sexta-feira procurou, em vão, correspondência entre os seus olhares e os de Sérgio, entre as suas palavras e as dele, porém nada aconteceu. Sérgio mostrava-se frio e distante. As duas horas, correspondentes à aula, pareceram-lhe um suplício, apenas amenizado pela sua presença.

-O Stor Sérgio evita-te – disse-lhe Mónica, baixinho – tem medo dos teus poderes de mulher fatal – riu-se colocando a mão na boca.

Lena preferiu não responder.

Na quarta-feira, depois de Paulo ter partido, faltou à primeira aula da tarde e foi procurar Sérgio no seu gabinete, no Palácio da Inquisição. A telefonista informou-a que o Professor avisara que já não voltaria de tarde.

Quinta-feira voltou a subir as escadas da Inquisição, depois de se livrar de Mónica, que fazia questão de a acompanhar e mais uma vez Sérgio não estava.

Hoje, acalentava esperanças, mas ao que parece nada iria acontecer.

Ao toque de saída, informou Mónica:

-Vou faltar à próxima aula, tenho que resolver um assunto que o meu pai me pediu. Pagar um seguro, na Praça do Geraldo – acrescentou.

-Vou contigo. - Mónica apressou-se a responder.

-Não. Vou sozinha. É rápido – já não deixou Mónica reagir, entregou-lhe os seus livros, pegou na bolsa e saiu apressada.

Fez questão de seguir Sérgio. Saindo do Vimioso, dirigiu-se à Inquisição.

Perante o olhar interrogante do Contínuo, informou:

-Procuro o Professor Sérgio de Almeida.

-Gabinete 3 – respondeu o homem.

Deu duas pancadas leves na porta e uma voz mandou entrar.

-Maria Madalena – Sérgio não pareceu surpreendido - deseja alguma coisa.

Lena entrou, fechando a porta atrás de si.

-Sérgio...Professor, posso falar consigo?

-Sobre?!...- Sérgio olhava-a interrogativamente, franzindo o sobrolho.

-Sobre nós…- respondeu, acanhada.

-Nós?! E nós temos assunto?! – Sérgio afastou-se da secretária atrás da qual se encontrava e dirigiu-se à janela, olhando para fora.

-Desculpe, Professor mas...devo-lhe uma explicação. - Maria Madalena sentia-se extremamente nervosa.

-A mim? Não...talvez seja eu que lha deva a si – avançava agora em direcção a ela – escute, Maria Madalena, no jantar...- e baixava o olhar – o que aconteceu, foi apenas fruto da ocasião e do excesso de bebida, mais nada. Desculpe se a fiz pensar outras coisas. Depois esta será a primeira e última vez que autorizo conversas particulares no meu gabinete de trabalho.

-Percebo, não se quer envolver com uma aluna. – Lena sentia-se desiludida.

-Não me quero envolver com ninguém. Vê – estendia a mão esquerda – sou casado.

-Foi por eu não ter vindo ao seu gabinete no dia seguinte ao jantar? Tive razões para isso.

-Eu vi a razão. Estava consigo na quarta-feira. – Sérgio levantou a voz e olhou de frente para ela.

-Você não sabe de nada. Aquele... é apenas o meu compromisso de honra.

-Então... deve honrá-lo – Sérgio, agora, fugia com o olhar enquanto Lena o procurava desesperadamente.

-Mesmo sem o amar, mesmo amordaçando no peito os meus sentimentos.

-Na sua idade, Maria Madalena, os sentimentos são vagos, confusos e quase sempre incertos...não acredite muito neles, por vezes não passam de fascinação.

-Eu sei o que quero, professor. – Lena mostrava-se convicta – e fora das aulas, da Universidade, aceita jantar comigo? – Arriscou.

Sérgio voltou-se e encaminhou-se de novo para a janela. De costas respondeu:

-Maria Madalena, vamos deixar as coisas como estão.

Lena aproximou-se. Junto dele, apenas lhe chegava ao pescoço. A figura máscula, de homem, estava envolvida num perfume suave, agradável. A sua presença transmitia segurança, aconchego, entrega. Sentiu uma vontade enorme, de estender a mão e afagar-lhe os cabelos negros...- Nesse momento, Sérgio voltou-se e os seus olhares penetraram-se.

-Tem medo de mim, Sérgio? – Lena sussurrou, junto ao seu peito.

Sérgio fechou os olhos.

-Não... tenho medo de mim. – Respondeu com voz apagada e rouca de emoção.

-Porque não combatemos juntos os nossos medos – Lena segurou-lhe a mão. Hoje, hoje à noite, jantamos juntos?

Sérgio ainda demorou a responder mas entregou-se:

-Tudo bem...- entrelaçou os seus dedos nos dela e acariciou-lhe levemente a mão - encontrar-nos-emos às oito horas, junto ao templo romano. Agora saia – pediu carinhosamente - Maria Madalena, por favor, não quero complicações no meu local de trabalho.

Quebrou-se a magia e tocou o sininho da realidade. Afastaram-se. Sérgio voltou a mergulhar na paisagem da janela.

Lena saiu sem dizer nada.

Quando descia as escadas da Inquisição que dão para a rua, sentia-se transbordar de emoção. Sérgio ameaçava tornar-se numa séria paixão, obsessão talvez... que importa é tudo novo e fascinante.

Junto à Sé, sentou-se num banco. Pegou no telemóvel, novo e útil instrumento que Paulo lhe tinha oferecido pelo Natal, muito conveniente para falar todos os dias, encurtar distâncias e controlar acções, assim julgou, desconfiada, quando ele lhe falou da sua utilidade. No entanto, agora, dava-lhe imenso jeito. Apressou-se a avisar em casa e a desmarcar com Paulo.

 

Não foi fácil encontrar o namorado que tinha o telemóvel desligado e que a sua mãe acreditava já estivesse a caminho de Évora para a ir buscar. Ligou, directamente para casa dele, de onde ninguém respondeu. Depois de ponderar, resolveu ligar para o Minimercado da D. Olívia.

Uma voz grave respondeu:

-Estou, Minimercado “A Flor da Serra”, faz favor.

-Boa-tarde, D. Olívia, sou eu, a Lena.

-Oh!...filha como estás. Aconteceu alguma coisa?

-Não, não aconteceu nada. Sabe do Paulo, preciso de falar com ele?

-De manhã, ele disse-me que ia à caça com o Alexandre e o João Carlos.

-Não atende o telemóvel.

-Não deve ter rede. Queres algum recado?

-Sim, por favor. - Pediu com alguma cautela - Diga-lhe que não me venha buscar hoje a Évora. Só posso ir amanhã, ao final da manhã, ele que me telefone para marcar a hora, mas hoje não venha, tenho um trabalho para entregar. - E apressou-se à agradecer – Obrigado e até outro dia.

-Tudo bem...eu digo-lhe. Adeus. - Respondeu friamente a mulher, do outro lado da linha.

Quando desligou sentiu-se invadida por um sentimento de receio e culpa.

Ficava muito mais descansada, se conseguisse falar com Paulo – pensou – aquela bruxa ainda me vai rogar alguma praga e correr-me tudo mal.

 

Até às seis da tarde, ainda ligou várias vezes, na tentativa de garantir, efectivamente, que Paulo não viria. Deixou recado à sua mãe e falou, inclusive com Magda, pedindo-lhe que encontrasse o primo antes que ele se metesse a caminho.

À medida que a tarde avançava e a noite se aproximava, afastava-se dela o temor de ver Paulo entrar-lhe pela casa dentro e crescia em si a ansiedade e o desejo de rever Sérgio.

Mónica estranhou que se arranjasse, para regressar a casa:

-Sais com o Paulo? – Perguntou.

-Sim. Vamos jantar cá em Évora. – Respondeu.

-Eu vou-me embora no expresso das dezoito e trinta. Esta semana era para não ir a Portalegre, mas tenho um baptizado de um primo, neste Domingo. Sara e Adília avisaram-me que saíam logo depois de almoço. Parece que foram juntas para Santarém. Adília tinha prometido que passaria o fim-de-semana em casa de Sara.

Nem ouvia Mónica. Despediu-se da amiga, sem que esta deixasse de estranhar a demora de Paulo.

-Deve estar a chegar. – Sossegou-a.

Finalmente, sozinha em causa, reflectia interiormente no risco que estava a correr.

É só uma vez – pensou – e depois... é só um inocente jantar. – Desdramatizou.

 

As pedras milenares do templo romano serviam-lhe de abrigo e amparo. Soprava um vento forte e frio. Não chovia, mas ameaçava. Aquela hora, poucas pessoas, se encontravam por ali. O centro histórico, a partir de uma determinada hora, logo que terminassem as aulas e encerrasse o comércio, tornava-se um espaço deserto e sombrio. Qualquer pessoa que por ali andasse parecia suspeito: de furto, de rapto, de violação, de adultério...

Lena estremecia, envolvida nos seus pensamentos, quando um carro parou de mansinho, junto dela.

-Sobe. – Sérgio sorriu-lhe pela janela.

Partiram dali, com pressa de chegar.

 

-Vou levar-te, para fora da cidade. Tens que desculpar, mas aqui, torna-se arriscado.

Lena olhava para Sérgio que conduzia com prudência e segurança, afastando-se do centro histórico em direcção à periferia.

-Conheço um pequeno restaurante, na Igrejinha. São poucos quilómetros. Importas-te? – Sérgio desviava por segundos o olhar da estrada e envolvia-a como que num abraço e Lena sorria.

-Não me importo nada.

Mais uns momentos de silêncio e olhares cúmplices.

-Sérgio...posso tratar-te por tu?

-Claro Lena, sem formalidades. – Respondeu o homem.

-Sérgio...gostava que fosses o meu melhor amigo. – Sentiu-se parva, inexperiente, criança até.

-Lena...minha jovem. Entre um homem e uma mulher é difícil que a palavra amizade atinja o seu significado pleno, muito menos, se se encontram sozinhos, numa noite fria e escura de inverno – Sérgio falava maliciosamente – eu e tu... sabemos ao que vimos.

-E porque vens, Sérgio? – Interrogou Lena, sem olhar para ele, apenas para a escuridão da noite que o carro trespassava com velocidade.

-Por ti...desafiaste-me. Nunca nego um desafio. – As palavras soavam fortes, marcantes.

-Então já somos dois.

-É uma excelente conta. – Sérgio, olhou-a de relance e avançou – O que desejas jantar?

-Qualquer coisa. Estou sem apetite.

-Veremos. – Respondeu Sérgio enigmático.

 

O pequeno restaurante, muito acolhedor, tinha uma ementa invejável. Na chaminé tradicional o lume crepitava aconchegante. Sentados, frente a frente, Sérgio servia-lhe vinho branco, fresco. Lena olhava à volta, procurando alguma cara conhecida, com o coração pulando na garganta. Sérgio, no entanto, parecia bastante descontraído.

Ainda não eram nove horas, quando o telemóvel tocou. Assustada repentinamente, Lena olhou para o mostrador. As cinco letras dançavam-lhe em frente dos olhos, recusando-se a juntá-las. P a u l o. Deitou a mão ao botão vermelho e desligou.

Sérgio interrogou-a com o olhar, para depois sentenciar:

-Precisas de privacidade para falar, podes afastar-te – havia algum azedume e até contrariedade nas suas palavras.

-Não vou atender. – Respondeu.

-Fazes mal. Este momento... é apenas um desvio de percurso. Um caminho secundário, um atalho... a vida segue paralela a ele.

Lena não respondeu, baixou os olhos e Sérgio pousou a sua mão sobre a dela.

-Estás instável e dividida. Entre o certo e o incerto, entre o correcto e o incorrecto, entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal – olhava-a demoradamente – minha jovem ingénua, a vida não somos nós que a conduzimos é ela que nos transporta. Trouxe-nos e leva-nos a seu belo prazer. O que estiver para acontecer, acontecerá – passou-lhe os dedos pelos lábios e falou-lhe baixinho – descontrai.

Preferia que Sérgio não lhe falasse por enigmas, no entanto, sentia-se atraída por este jogo de sedução.

-Jantamos? – Sérgio procurou aliviar a tensão – está óptimo.

Lena pouco comeu. Sentia um nó na garganta. Era preferível atender Paulo ou ligar-lhe, não fosse ele pensar que algo lhe tinha acontecido e metesse a família em pé de guerra. Esta sombra que a perseguia. Não Paulo, propriamente dito, mas tudo o que ele personificava. A aldeia, a família, os compromissos, a honra. Olhou Sérgio e viu um estranho. Que fazia ela com um estranho, de noite, longe de casa – alarmou-se.

-Lena...vou pedir a conta – Sérgio interrompeu-a.

-Eu aproveito... para telefonar – Lena procurou a sua reacção com o olhar.

-Certo...- Sérgio baixou a vista e apontou-lhe um pequeno átrio de acesso às casas de banho.

 

Quando Paulo atendeu, foi ele próprio que não a deixou falar.

-Lena, onde tens estado? Tens tido o telemóvel desligado. Afinal o que aconteceu para não vires hoje. Já estava de saída quando meia aldeia andava à minha procura. Tinha-mos combinado às seis.

-E tu. Onde estavas? – Sentiu necessidade de ser brusca com ele, que ousava sempre importuná-la - liguei-te toda a tarde e também não respondeste. Tive que ficar para terminar um trabalho. Amanhã vou entregá-lo da parte da manhã e só por volta do meio- dia é que estarei despachada, podes vir buscar-me depois dessa hora.

-Podes vir buscar-me, vamos lá a ver. Tenho o electricista na casa e eu mesmo quero supervisionar o trabalho. Não estou sempre à mercê da menina. - Paulo mostrava-se contrariado.

-Tu é que sabes, eu posso ir na camioneta. - Lena continuou no mesmo tom de brusquidão.

Não recebeu de volta resposta imediata e houve mesmo, entre os dois, um momento de silêncio desentendido. Depois a voz de Paulo soou mansinha e com desalento:

-Lena, se se passa alguma coisa entre nós diz-me. São tantos contratempos...

Lena não se sentia com coragem, agora, de tecer qualquer consideração sobre a relação deles. Em vez disso procurou acalmar Paulo e colocar um ponto final na situação.

-Paulo é noite. Amanhã chega depressa. Falaremos com calma. Não aconteceu nada de especial, são situações normais. Atrasámo-nos e agora temos que terminar o trabalho.

-Só tu e a Mónica? – Paulo não perdia a oportunidade de a manter sob controlo.

-Sim. Só eu e a Mónica. Apenas as duas...até amanhã.

-Vou buscar-te Princesa. Estou aí ao meio-dia. Um beijo muito grande.

O dedo apressou-se a deslizar sobre o botão vermelho. Stop... para Paulo.

 

Sérgio esperava-a ao balcão.

-Podemos ir? – Perguntou bruscamente.

-Sim claro...desculpa. – Ela olhou-o temerosa.

Sérgio não respondeu, dirigindo-se para o carro. Abriu a porta contrária ao condutor e esperou que Lena se acomodasse. Depois fechou a porta, entrou e ligou o motor.

Antes de avançar, virou-se e olhou-a fixamente, enquanto respirava fundo.

-Tenho muitas dúvidas...Maria Madalena.

Outra vez o seu nome próprio, sinal que Sérgio adoptava, novamente, uma atitude formal e de distanciamento.

Ela não soube o que dizer. Ele que fizesse o que entendesse. Também para ela decidir não estava fácil. Melhor era terminar tudo antes de ter começado. Há situações que não têm futuro. Mas ela não esperava, nem queria nada dele. Futuro certo, ela já tinha. Vivia numa terra que ele não conhecia, tinha uma família que não era a dele, os seus amigos não eram comuns, construía-se uma casa para ela morar, tinha noivo e ia casar.

-Sérgio...não pretendo exigir-te nada. – Disse, sem olhar directamente para ele.

-Não estou disposto a dar nada. – A resposta soou-lhe fria e cortante.

Seguiram-se momentos de silêncio consentido. O carro avançava, pela estrada estreita, cortando a noite. Caíam sobre os vidros, uns pingos de chuva miúda, muito leves e mesmo com o aquecimento ligado, Lena tremia de frio. Um frio nervoso que lhe assolava o corpo, a incomodava e a fazia desejar ter seguido para casa, encontrar a família, sair com Paulo. Este ao menos não lhe traria surpresas!

O carro a vagou e meteu por um atalho. A estrada de terra batida atravessava um espesso eucaliptal.

Quando as luzes do carro se apagaram a escuridão invadiu o olhar. Nada se vislumbrava.

Acoitados nas árvores, alguns pássaros sobressaltados, levantaram voo e as nuvens carregadas, sopradas pelo vento, deixavam apenas que, por escassos segundos, a lua aparecesse. A chuva teimava em cair e Lena voltou a tremer.

Sentiu a mão quente de Sérgio sobre o seu colo, procurando as suas em afagos lentos e suaves. Depois os cabelos e os contornos do rosto. Os dedos deslizando sobre a sua boca enquanto lhe mordia levemente a orelha e lhe arrastava os lábios pelo pescoço, descendo e subindo encontrando-lhe, uma e outra vez, a boca húmida e macia que pressionava contra a sua. Os braços apertando-a contra o seu peito. As mãos avançando, movimentando-se lentas por debaixo da roupa, procurando as suas formas, tocando e acariciando-lhe a pele. Ao frio nervoso, Lena sentia seguirem-se ondas de calor emocional. Apertada entre os braços de Sérgio, sentia-lhe a respiração intensa, o hálito quente, o odor másculo e crescia em si, um desejo incontrolável de o ter.

 

Sobre o banco traseiro espaçoso, corpos nus, exaustos, húmidos e suados. O ar quente, quase saturado, era uma mistura de odores indecifráveis. Dos vidros interiores corriam gotículas de água respirada. Na escuridão da noite, só o contacto físico transmitiu prazer e emoção. Não se cruzaram olhares, não se vislumbraram expressões, não se trocaram palavras, apenas se ouviram pequenos sons, gemidos.

Sérgio movimentava-se agora, vestindo a roupa e Lena apressava-se a procurar a blusa e a restante indumentária. Imperava um silêncio que ninguém quebrava.

Quando o homem saiu para o exterior, Lena apressou-se a ocupar o seu lugar, ao lado do condutor. Não demorou que o carro avançasse, cortando a noite.

As luzes da cidade brilhavam ao longe, intensamente, mas o frio voltou a instalar-se.

Nada na noite. Corria o tempo veloz, com pressa de chegar.

-Pode indicar-me onde mora? – A voz de Sérgio soou-lhe desconhecida.

-Siga em frente e volte à direita – respondeu e alguns minutos depois: -É aqui.

O carro parou sem que o condutor desligasse o motor.

Lena olhou para Sérgio, procurando explicações.

-Obrigado pela companhia e Boa-noite. – Sérgio olhava-a de frente, completamente frio e distante.

Lena queria dizer mil coisas, mas não disse nada. Abriu a porta e saiu.

Não olhou para trás, mesmo que o fizesse, Sérgio já não estaria lá, tal a velocidade a que o carro desapareceu.